
Banheiro da suíte
A suíte conta com um banheiro próprio, decorado com requinte e acentuando os tons clássicos que a totalidade do imóvel propõe para uma experiência imersiva.
O vagão de elite
É claro que era um mundo belo, - pensava consigo mesmo. A humanidade havia garantido cada vez mais sua beleza, como um escultor que talha a pedra, removendo as imperfeições, os perigos e as inseguranças. Alexandre via dessa forma, e apesar de que muito ainda precisava ser feito, acreditava fielmente que o homem ainda conseguiria alcançar o ápice da perfeição, construindo um mundo onde as feras não espreitariam à noite, e a vida teria mais chances de se estender por um mundo seguro e belo.
Era um nobre, obviamente, de outra forma não poderia estar em um vagão privativo, sentado em frente a uma escrivaninha de mogno, lustrada, com detalhes de ramos que denunciavam a maestria do artesão que o fizera, e que justificava o preço exorbitante que ele pagou satisfatoriamente. Ele podia pagar, e por isso, aquele mundo poderia se manter belo na maior parte do momento, pois ele escolhia o que queria ver. No entanto, não confunda as atitudes de todo homem bem-sucedido como algo que é guiado pela ignorância. Já vira tanto da crueza do mundo que passadas as décadas de trabalho e sucesso, optara por não ver um mundo que por mais que o progresso lhe tocasse, ainda tinha como base pétrea os princípios da natureza, que dão na mesma medida em que tomam.
A carne, o sangue, o ar, a terra, a fúria, a tristeza, o tempo, e o medo eram conceitos implacáveis que sem perceber, trabalhavam conjuntamente para reger um caminho que estava fadado a ser trilhado. Pelo menos, era o que pensava, contudo, era um homem tolhido pela experiência, e a dor não permitia que sua mente fosse além do que seu coração conseguia.
Emma, por outro lado, contrastava a visão do pai, ela olhava para o homem à sua frente, deslizando os dedos sobre os detalhes na mesa, obcecado. Não compreendia por que ele, tendo à sua disposição uma locomotiva que poderia ir de Paris a Istambul, detinha-se em movimento nas mesmas linhas férreas, e jamais contemplava a paisagem que passava pelas janelas, a mesa à sua frente, lhe parecia infinitamente mais digna de contemplar.
- Diga-me pai, no que a madeira desta mesa se diferencia com a das centenas de outras que compõem as árvores que agora preenchem a paisagem aos nossos lados?
- No valor…e na raridade. - ela fitou-o com um olhar desdenhoso, o que o fez tornar a falar. - A verdade, minha criança, é que os seres humanos sentem-se senhores de tudo, até que o tudo os consuma. Nenhum grande artesão daria-se ao trabalho de se dedicar a entalhar uma madeira comum, pinheiro, carvalho, existem milhares por aí, e embora sejam filhas da mesma mãe, nós a vemos com o desprezo que a experiência humana tornou a grande maioria das coisas, comum.
- Às vezes, acho que tornamos algumas coisas comuns demais. A fome, a morte em certos aspectos; o passar do tempo, a miséria. - ela respondeu com um tom melancólico e inconformado.
O homem levantou-se e após acariciar os cabelos da filha, abriu a janela em cima da escrivaninha, fazendo voar todos os papéis e derramando tinta sobre a madeira brilhante. - Veja, minha filha, para quem está parado, este vento feroz não é mais do que uma brisa, mas a nossa marca nesse mundo, o meio de transporte que construímos para tornar nossa existência mais fácil, tem uma resposta imediata da natureza com relação ao seu funcionamento, e este princípio se aplica a todos os elementos da vida humana. O problema jaz justamente que ao contemplar o tamanho da significância que temos nesse mundo, a grande maioria de nós encontra-se face com a sua própria impotência, e tenciona a entregar-se ao medo, o sentimento mais instintivo que existe, e, por isso, construímos prédios mais altos, meios de transportes mais rápidos e seguros, e armas cada vez mais mortais, não porque queremos nos defender, mas porque a elegância do controle que nossos juízos atribuem a estas coisas é tão grande, que nos vemos cativos da nossa própria criação, produto do medo, e que agora nos faz prisioneiros do sentimento que nos faz tão filhos da natureza quanto a madeira desta mesa.
- Se o senhor sabe disso, porque continua olhando para essa mesa como se fosse a primeira vez? - perguntou ela sem entender a relação do monólogo feito pelo pai com a pergunta que iniciara tudo.
- Ora, porque ela me faz refletir não sobre o valor dela, mas o meu. Provavelmente, para alguém, eu não valho mais do que essa mesa de madeira luxuosa, e para natureza a madeira em ela foi construída não difere em nada de outra. No balançar deste vagão, no chacoalhar desta mesa, dos lustres que enfeitam ricamente, ameaçando estilhaçarem-se nos trechos mais acidentados, ou do próprio tempo que escurece a pintura e apodrece a madeira, é que podemos ver, a elegância de certas coisas valerem quase nada. Até mesmo o valor que atribuímos a algo, tem data de validade, e está tudo que reside tanto nos corações e mentes dos homens, quanto fora deles, sujeito a mesma natureza. Assim foi, e assim será, pois somos filhos de uma mãe que ousamos renegar constantemente, e por este pecado, temos muito que refletir, pois em certos casos, não há o que se reparar.
Quando Alexandre morreu, décadas mais tarde, e Emma visitou o trem de seu pai, agora prestes a ser leiloado, grande foi a surpresa da jovem, ao perceber que a mancha da tinta na escrivaninha, causada pela ventania que responde o movimento ferroviário, jamais foi limpa, mesmo com todo o esmero que o móvel era apresentado, ainda polido e sem qualquer defeito aparente, salvo um entalhe grosseiro abaixo da mancha - não há valor no que nunca foi seu.


