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Cozinha

A cozinha, por sua vez, decorada na cor sépia, acompanha a casa no modelo dos móveis, oferecendo uma experiência imersiva dentro da temática ferroviária.

Conto #3
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A coragem de seguir viagem

      Quando os solavancos dos trilhos materializam-se pela grande máquina de transporte ferroviário os utensílios de cozinha balançavam-se nos ganchos, numa percussão desajustada que Wilston internamente chamava de parte de sua banda marcial. Quando garoto era frequentemente repreendido por não acertar o ritmo na banda da escola, intimidação contínua de um professor que parecia implicar com o jovem franzino cuja pele negra tragava para si a atenção que o revelava como o único garoto negro da escola. Agora, trabalhando como maquinista de uma recém inaugurada linha de trens atuantes pela Europa. 

      Jamais pensara que entraria em um vapor novamente. Desalentado, guiado para uma guerra da qual jamais lograra entender o propósito, achara que jamais tornaria a entrar em semelhante meio de transporte. Parte porque na época que não voltaria, parte porque não era um homem com condições das quais permitia semelhante luxo. As faces grossas, mas gentis, remetiam aos extenuantes trabalhos que havia exercido nos curtos vinte e um anos que dispunha em sua existência. E agora estava ali, enganando, temendo ser enganado. A verdade em toda esta história, é porque a guerra lhe trouxera até ali, e naqueles vagões estava sua esperança de ser apenas uma pessoa.

      Ele olhava para o café com contemplação de um homem aliviado que via naquela bebida uma porta para apreciar seu labor em total integridade, exposta numa pequena caneca de ferro meio amassada, com as iniciais de seu nome e sobrenome: W.S.J. Aquela estreita cozinha era seu local de descanso pessoal, ali se reanimava para enfrentar a madrugada escura adentro, ali tinha a oportunidade de refletir sobre o pequeno mundo que agora conhecia aos poucos, e de empenhar um ofício nas ferrovias inglesas que ninguém jamais tivera visto: conduzir um trem por esta. A liberdade de exercer-se, seja o que estivesse dentro de si que quisesse  manifestar-se. Ele bebeu o último gole de café na caneca que era presente de sua mãe, abriu o forno onde havia um pedaço de assado ainda quente, colocou sobre um prato de metal, com as mesmas características da caneca e foi até a parte traseira do vapor. Ao olhar os trilhos que ficavam para trás e as estrelas que seguiam, cintilantes em um céu azul escuro, cofiou o bigode grosso e negro para cima, no estilo inglês, que deixara crescer por sugestão dos outros funcionários do vapor. Diziam eles: “irão dar-te mais crédito pela excelência do teu trabalho, querido. E evitará o julgamento daqueles cujo preconceito baseia-se na aparência, pois está na moda!” .

      Deteve-se alguns pares de minutos comendo com certa rapidez para voltar de seu intervalo, quando uma família de passageiros veio da classe executiva do trem procurando pelo maquinista. Receberam-no com muita simpatia e ternura, sem a surpresa costumeira que a maioria se deparava ao vislumbrar um negro como maquinista. O patriarca da família, um lorde inglês de barriga avantajada, se manteve caloroso na recepção e falante em demasia.

      Quando o Wilston olhou preocupado para o relógio de bolso, pediu licença de uma forma meio desajeitada, percebendo que estava excedente em dois minutos do seu intervalo, o estado meio desajeitado, mas completamente comprometido do jovem divertiu o lorde, que o deu um tapinha no ombro com um olhar divertido, porém muito respeitoso. Ele então afagou a barba branca com curiosidade e olhou profundamente nos castanhos olhos do rapaz a sua frente, “um homem bem disposto”.

      O duque pediu para acompanhar o condutor até a locomotiva do vapor, com a justificativa de que gostaria muito de ver o funcionamento do vapor com os próprios olhos. O jovem, um pouco constrangido, pois não sabia se era permitida a presença de passageiros na locomotiva, começou a balbuciar nervosamente, dando razões para que o homem não fosse, pois talvez fosse muito incômodo o calor, a fuligem e que poderia sujar-se com o carvão que manchava até onde os olhos não viam. O homem apenas falou, meio bufante : “Bobagem, rapaz, não se preocupe com isto, em todo caso, falarei com o comissário para me certificar de que não há problemas com o trânsito de passageiros naquela seção”.

      Cerca de meia hora depois, o jovem já tinha retornado ao seu posto, cercado de alavancas e com o som alto da locomotiva sobre os trilhos. O chapéu virado para o lado, e um cigarro suspenso no canto da boca, quase esquecendo de ser fumado. Estava alimentando a chaminé quando foi surpreendido pela voz grave e gentil do lorde: “Como vieste parar aqui, rapaz? Não há muitos maquinistas - hesitou em esmiuçar os detalhes, mas prosseguiu enquanto o calor da locomotiva já preenchia sua fronte de suor. - da tua condição, ainda mais sendo contratado por ingleses finos e cheios de falsos discursos progressistas.

      - Nenhum, milorde, sou o primeiro. - respondeu Wilston um pouco embaraçado, enquanto ajeitava o chapéu e jogava o cigarro fumado pela metade fora, com asseio de pôr-se apresentável.

      - Ora, meu jovem, não seja tão formal, ninguém espera que estejas em condição de gala trabalhando tão perto do calor e do carvão. - tranquilizou o lorde com uma risada acolhedora.

      - Perdão, milorde. Apenas tento manter-me o mais apresentável possível, para evitar transtornos e más impressões! - disse o garoto um pouco consternado.

      - Más impressões! - bufou o lorde. - Garoto, esta gente está ficando cada vez mais maluca, os ingleses são tão apegados às boas maneiras e à elegância quanto um cachorro é a um osso, no entanto, este último sabe de onde o osso vem!

      - O senhor é de…- ia perguntar o jovem, mas o lorde o interrompeu.

      - Sou inglês! - riu-se com diversão. - No entanto, fui criado e morei por muito tempo desta minha mórbida vida na Escócia.

      -Parece um bom país, meu senhor, esta é a primeira vez que estou indo para lá, um dos muitos privilégios que esta abençoada profissão me permite desfrutar! - disse o jovem com um sorriso caloroso.

      O homem velho fitou o jovem, e lembrando-se do cigarro que ele havia jogado fora ao deparar-se com sua figura, quebrou o silêncio oferecendo a ele um charuto, enquanto acendia o seu próprio. O maquinista, um pouco constrangido, aceitou hesitante, e logo se viu num colóquio de horas a fio com o nobre.

Percebendo o cuidado e maestria que o jovem empenhava na sua função e ainda conversava energicamente, elogiou a desenvoltura do condutor e deteve-se contemplativo enquanto o sol erguia-se no horizonte para o qual os trilhos os levavam. 

Logo nos primeiros segundos que o sol começara a despontar, Winston quebrou o silêncio: “É de tirar o fôlego, não é?”. 

      -De fato, meu jovem, de fato!

      Após usufruírem da aurora, o homem deu um tapa de despedida nos ombros do jovem, e parabenizou o jovem pelo excelente trabalho, e pela ótima companhia.

      -Agora, se me dá licença, tenho que voltar para minha cabine, ou a velha srta. Byron puxará o freio de segurança para me procurar. - disse o velho de forma divertida. E com um pequeno sobressalto de alguém que se recorda de algo importante. - Já ia me esquecendo, eis o meu cartão, entre em contato comigo quando puder, gostaria de tratar sobre negócios, um trabalhador da sua qualidade está em falta, e caso tenha algum conhecido ou familiar que precise de emprego, tenho certeza que podemos dar um jeito de encaixá-lo em nossa equipe! Até mais ver, garoto! 

      O garoto, ao olhar para o cartão, se deteve atento ao símbolo de um B em dourado, pois tinha impressão de que o conhecia, no entanto, seus afazeres o impediam de deter sua mente na dúvida, e foi quando sentou-se na cadeira de condução que pode ver a placa com a mesma letra, declarando o vapor como pertencente à companhia ferroviária Byron.

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