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Banheiro social

O banheiro social apresenta a temática de linhas de metrô, sendo decorado com um mapeamento da primeira linha de metrô, contrastando com a cor serene stream do cômodo.

Conto #8
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A linha jornada e julgamento

      “O submundo dos não tão afortunados e dos quase totalmente desafortunados”, pensava comigo mesmo. Era algo do qual eu não estava acostumado, e não sabia se poderia me acostumar, assim, atravessando pares de cidades em menos de uma hora, numa velocidade que não era subsônica, era subterrânea. Piada que faço na intenção de trazer um pouco de vivacidade ao peito solitário que já se acostumou. E deu certo, ri piedosamente, como quem ri para não deixar o tio das festas de família sem um coro. 

      Eu chacoalhava junto com aquela gigante serpente de metal, aquele verme de aço que se entranhava pelos buracos abertos pelo homem e para o homem. Carregando centenas de comensais dentro de si. Na verdade, “esse verme sem consciência precisava mais de nós do que nós dele”, pensei comigo mesmo. Enquanto olhava o metal reluzente que fazia parte de toda estrutura, ouvia o zumbido agoniante do freio que anunciava um embarque/desembarque próximo. O cheiro era uma condensação de muitos sentimentos, pelo menos foi o que idealizei desde a primeira vez, o cansaço, a frustração, o alívio, e vários tipos de viver. Eu havia arranjado uma forma de romantizar nossa natureza, como sempre haveria de fazer, havia dado notas de sabor ao vinho que chamava de odor do metrô. Quando pensei nisso, ri, sem piedade dessa vez.

      Eu fui durante minha vida um garoto como qualquer outro, um brasileiro como qualquer outro, até que meu doutorado me levou à Inglaterra. E aqui estou eu, no famoso metrô londrino, ouvindo o inglês pomposo deles, respondendo mentalmente na mesma língua as conversas alheias para me habituar com as expressões. Percebo que quando a noite cai, os demais passageiros olham mais frequentemente para mim, mas com sutileza, veem meu cabelo, será? Não, acho que estou adequado a tudo, os tempos são outros, estamos no século XXI, o contemporâneo superou o moderno, e agora as barreiras de outrora foram todas derrubadas. Eu ria de novo, como alguém que ri do maior absurdo que lhe é dito. Minha boca, meu nariz, cada fio de cabelo meu, receberam tantos olhares dentro e fora deste metrô, que não podia ser mais mentiroso como fui agora. 

      No entanto, eu estava ali, e portanto, era a prova irrefutável de que não era a verdade, eu viajei milhares de quilômetros, atravessei o maldito Atlântico, suportei olhares, e já perdi a conta de quantas vezes pediram para olhar meu visto, mesmo que eu não tenha certeza se alguns que pediram tinham autoridade para exigir tal coisa. E não me demoveram, chacoalho neste metrô londrino muitas vezes na semana para ir até a universidade, enterro-me sob estes túneis que desafiam meu temor de lugares fechados, apenas porque quero realizar um sonho, e de quebra, pagar uma dívida, não uma econômica, mas de afeto. Mais gerações do que pude contemplar trabalharam incansavelmente para que seus sucessores tivessem mais liberdade do que eles, e eu, sou o fruto desta árvore que cresceu mesmo com tantas machadadas, ainda que de vez em quando ela seja agredida, está bem firme e sabe que em seu crescimento não mais será detida.

      Sou um fruto dentre tantos, e permitiu esse mundo ainda vago por centelhas de esperanças, que eu encontrasse outros, como eu. Mesmo aqui, e os vejo, todos os dias, neste vagão, de pé ao meu lado posso contar um ou dois. Às vezes de uma árvore diferente, de um galho diferente, ou de uma terra diferente. Muitos de nós não compartilham a nação, a língua, ou até mesmo continente, mas vejo um pouco de mim neles, o meu medo e a minha coragem, e acho que eles também veem em mim, e quando percebemos que existimos, o eu e o tu, secretamente damo-nos forças para continuar. 

      Penso como a vida pode se metaforizar com estas linhas de metrô, com esse barulho de máquina e silêncio de gente. Com esse mover-se sem se mover. Com os olhares que nem sempre se cruzam, mas sempre se percebem. Tanto de nossa existência se resume a influência indireta, essa ajuda que não se propõe como tal, diretamente, mas que acolhe aqueles que sabem onde olhar.

     Por muito tempo me orientaram, até ordenaram a baixar a cabeça, hoje sei, que para saber onde olho, preciso dela sempre erguida.

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