
Suíte
Mobiliada luxuosamente, a suíte oferece um ar clássico, sem abandonar a proposta da experiência oferecida pelo apartamento, com elementos que se ligam diretamente ao tema ferroviário.
A impetuosidade no embarque
Domitila atentava sua audição, esperançosa, porém era rapidamente frustrada por um silêncio noturno e pouco acolhedor da pomposa cidade de Coimbra. Encontrava-se numa modesta estação, os vapores precisavam passar em uma única via por quilômetros, e seu itinerário de viagem era metodicamente organizado para que não houvesse nenhum encontro de trens no cruzamento entre as rodovias que circulavam naquela região modestamente povoada. Como nenhuma história digna de ser contada nasce de situações comuns, mas extraordinárias, e isto de modo não necessariamente literal; aquele vapor havia se atrasado, e a situação gerada por este atraso passou, de um pequeno acontecimento comum, para uma sublime fonte de motivação pessoal. Afinal, qual noite seria mais provável de acontecer inúmeras improbabilidades, senão a véspera de natal?
Dentro de um cesto trançado por palha, modesto e forrado confortavelmente, um felino monocromático dormitava, interrompido continuamente pela mulher que abria a portinhola para conferir se o animalzinho encontrava-se em bom estado. Encontrava-se irrequieta de corpo e alma, pois o menor caos numa rotina de planejamentos minuciosos em intuito de valer o tempo livre, encontrava-se inconsolável pelo atraso ferroviário. Pensara em fretar um carro, mas a soma de dinheiro que distinguia os dois meios de transporte a convencera facilmente de viajar de trem. Naquele momento, o arrependimento a corroía gradativamente, e ela amaldiçoava uma avareza em si que apenas ela enxergava.
Um trio de homens, distintamente trajados, aproximava-se pelo correr da estação, relaxados, com um ar ostensivo e liberto. Carregavam o jornal matinal, dois deles analisando atentamente as manchetes, e o que não se reservava a esta atitude, desfilava empavonado, com o peito no queixo e uma face ruborizada pela autoexibição, fitando os céus como se lá morasse.
A jovem olhou de cabeça soerguida para o relógio da estação, marcando morbidamente as quase cinco horas da manhã. Os olhos, após conferirem, voltaram-se rapidamente ao chão, e as nuvens negras que se acentuavam sob o par de claras esmeraldas que via o mundo, aprofundaram-se um pouco mais no rosto mouro da jovem. Ela ouviu um som arrastado vindo de dentro do pequeno cesto onde encontrava-se o ocioso Apolo, e tornou a abri-lo, dessa vez para estender a mão esguia cujo dedos manchados levemente de preto delatavam o ofício da escrita.
O som emitido pelo jovem felino fora percebido pelo trio que havia se detido em sua caminhada e agora conversavam em tom adulador. Ainda sim, quando perceberam a origem da perturbação de seu colóquio, não detiveram seu olhar por muito tempo. Não porque lhes desinteressava, mas pelo fato das formas que a existência feminina esboçavam em sua constituição física. Uma mulher jovem, de cabelos castanhos claros, e uma pele de cor moderadamente mais clara que cacau torrado coloria um rosto de traços sutilmente miscigenados, pois a delicadeza dos olhos verdes e de lábios generosos contrastava com uma face magra, austera e de certa autoridade quando assumia o semblante naturalmente contemplativo e preocupado. Em suma, era uma face que deixava os homens hesitantes na forma como procediam em sua presença, caso fossem homens quaisquer, no entanto, nenhum daqueles acreditava ser pertencente a esta categoria, e ainda sim, desviaram o olhar.
-Como eu dizia, cavalheiros, não há folheto de notícias mais proeminente do que esta gazeta que tens em mãos! - disse um dos homens que apesar da soberba infantil já transparecia quase chegar aos quarenta.
-Sabes vender muito bem vosso peixe, meu caro conde. No entanto, devo questionar, por que colocar uma mulher na manchete principal? - indagou o mais jovem de todos.
-Doutor, bem deves saber que se mil pássaros passam à nossa frente todo dia, e no mesmo lhe passa um pavão, qual darás mais importância? - respondeu o chefe de imprensa.
A jovem atentava ao colóquio dos homens como se quisesse incinerar o jornal com os olhos. Sua face tornou-se rigorosa, e uma leve fúria corava as faces cor de oliva. Ela buscava outras distrações na velha estação. Pôs-se a observar o ponteiro do relógio, acima de todo e qualquer ser ali, os guichês com as fracas luzes amarelas, o atendente que ressonava silenciosamente com as mãos no bolso e o boné sobre os olhos. Ela invejou o vendedor de bilhetes de estação. Contemplou aquela monotonia que sempre almejava para si. Um homem inquestionável, ao contrário, era ele quem questionava a todos: Para onde? Há bagagens? Precisa de troco? Não, não era a vida dela.
Passará os vinte e poucos anos de vida sendo questionada: Por que queres estudar, Domitila? Desejas ficar sozinha para sempre? Queres que eu tenha uma velhice desacompanhada de netos? Se prosseguires com isto nenhum homem distinto vai querer se casar contigo, não vai ter luxos nem regalias, vai trabalhar até o fim da vida, não há leis que protegem mulheres neste caminho, entendes isto?
-Minha jovem, sua carruagem a aguarda. - disse o cobrador de meia-idade que lhe desatara tantos pensamentos, com um tom bem-humorado.
O vapor ali já iniciara seu processo de partida. O barulho de engrenagens fazia com que fosse impossível perceber o que o grupo de homens continuava a debater energicamente. Ela adentrou o trem com a caixa na qual carregava o jovem felino e o depositou suavemente no banco. Sentou-se, mas uma inquietação barulhenta tomou seu peito. O céu já clareava, e denunciava uma chuva prestes a desabar. Olhando para o vazio banco à sua frente, e com a mão repousando sobre o felpudo animal, ouviu uma voz invasora que por um momento atribuiu aos fantasmas passados.
- Isso não é atribuição de mulheres, doutor. Uma mulher na academia! Pode fazer filosofia ou medicina que seja, quem haverá de lhe dar crédito? O matrimônio bem arranjado é a maior felicidade que uma dama pode dar para Deus e para a pátria. Há composturas que devem ser religiosamente mantidas, normas de comportamento, a extravagância é um gozo dos homens! - disse o homem mais velho, que ela ainda não tinha conhecimento da voz.
Então, como uma contestação natural ao despautério, como se o coração dela e seu estado controlassem os dons naturais do mundo em que se vive. Uma tormenta desabara, e os homens iam fugindo dela, com o jornal em mãos, apontando furiosamente para a imagem preto e branco da jovem que se apresentava como notícia principal. O trem começara a se mover, e a chuva tomara proporções agressivas. E Domitila, como num súbito ímpeto de algo que não sabia identificar, atravessará os vagões e segurada por um corrimão na porta de entrada dos passageiros, atropelou o cobrador de bilhetes e sustentou seu corpo para fora a observar o trio de homens que perceberam a súbita movimentação interna do vapor. E conforme a chuva caia nos cabelos dela, e os cachos retornavam a sua forma natural pela purificação da água, eles fizeram rápidos movimentos de surpresa ao perceber que a notícia estava ali, de vestido vermelho e sem armações, ensopado, vestindo uma mulher que por um momento desnudou-se perante eles. A afronta fora contemplada com olhares de desaprovação e até um desprezo daquele ato espalhafatoso.
Já não havia mais estação que abrigasse o trem, e não se sabe dizer quanto tempo ela se manteve sob a chuva, pois para ela os pingos suavam como carícias, e o vento que encontrava seu corpo parecia querer que ela alçasse voo. E só parou de olhar para trás, onde momentos antes vira seus críticos, para olhar o vasto céu.


