
Lavanderia/ Churrasqueira
A lavanderia também dispõe de um espaço para fazer churrasco, e acompanha o ambiente interno de um vapor com sua decoração lúdica e cor sépia.
Os trilhos do xerife
O homem cuja aparência jovial jamais denunciava o fato de estar perto dos sessenta anos, era um ser relativamente intrigante aos olhos dos outros indivíduos que dividiram o trem. Assumia uma postura ansiosa em meio aos vagões, esfregando as mãos e olhando curiosamente para o rosto dos que se sentavam no vagão social. Um homem desconfiado, de cabelos um tanto desgrenhados cuja cor só não o camuflava com a madeira que revestia as paredes do trem por conta das mechas grisalhas que caiam sobre os ombros. Vestido formalmente, de feições compridas e boca pouco delineada, semi-escondida por um grosso bigode, deixava transparecer um estado de alerta enquanto bebia um café forte no fogão de ferro que esquentava aquela seção do trem. Um dos funcionários pensara em ir censurá-lo por deixar aberta a portinhola do fogão, que crepitava jogando pequenas brasas no chão, no entanto, o olhar castanho, profundo como uma fossa marinha o fuzilou quando ele se aproximava, demovendo-o da ideia como um cão que respeita o dono.
O homem detivera-se alguns momentos enrolando o tabaco e acendeu nas brasas do fogo. Quando abriu a janela de sua mesa e o vento invadiu, despenteando senhoras e amassando o jornal de senhores, ele apenas deu de ombros com indiferença, e, quando um rapaz de cabelo cuidadosamente penteado e perfume de alfazema se dirigiu até o senhor com uma feição incomodada e reluzindo uma soberba que se afiançava na qualidade dos músculos, ficou paralisado por uma eternidade de segundos quando o homem apenas puxou o longo casaco para trás da cintura, revelando dois revólveres em coldres abdominais, conjuntamente com uma estrela oxidada pelo tempo e maus cuidados com uma pequena identificação quase ilegível “Xerife”. O rapaz afastou-se.
O homem deu um suspiro de cansaço. As velhas cicatrizes já fisgavam sua pele. As balas que os fora-da-lei disparavam nem sempre erravam, e em momentos de sua vida, ele desejava que tivessem sido mais certeiras, pois estava há muito tempo naquele ofício, e os anos de vida naquela profissão lhe cobravam agora mais do que era possível dar sem perder algo que fosse impossível de recuperar. E, naturalmente, havia feridas que nenhuma cicatriz delatava. Quando uma dessas lhe fisgava, ele abaixava o chapéu de modo que ninguém pudesse lhe ver os olhos.
Ele observava tomado pela angústia os olhares distraídos dos passageiros, olhares sonolentos com o passar da tarde, ou, maravilhados com o crepúsculo oeste que apenas o deserto americano podia prover. As formações rochosas, amareladas, agora ameaçavam fazer o sol sumir conforme o vapor avançava pela via férrea. Ah, como ele cobiçava aquele olhar despudorado de temor, um olhar que não conhecia o medo ou a cautela. Um ar contemplativo e displicente que ele não tinha há mais de quarenta anos. Um olhar esculpido não unicamente pelo medo, mas pela perda. Quantos companheiros tinha perdido naquelas pradarias, nos solos inférteis. Quantas vezes vira a areia carmesim, tocada pela morte de seus iguais, uma morte provida pelos seus iguais.
Pouco tempo após assumir como assistente de xerife em um condado de Oregon, sua mãe lhe dera um colar que carregava uma cruz de prata, “para protegê-lo” disse. Isso fora três anos antes de ver o xerife, uma figura que se tornou paterna após inúmeras incursões atrás de bandidos pelo sol escaldante, ser atingido e morrer só dois dias depois pela falta de assistência médica. Hoje, nem mesmo ele sabia dizer em que parte do deserto, se era na fronteira do Oregon ou do Texas que ele tinha sepultado o velho mentor. Quando isso se sucedeu, ele deixou o colar fixando os gravetos acima da cova do velho xerife, e assumiu a estrela cujo sangue nunca fora limpado.
Quarenta anos após, próximo à idade que seu mentor tinha, ele se assemelhava em muito. Não cultivara família, sua linhagem para sempre desconheceu sucessão, seu nome morreria com ele. E então, em momentos como este, fitando, vigiando, zelando o bem-estar de um punhado de pessoas, ele mesmo que por uma pequena fração de instantes, cobiçou a vida daqueles civis. Suas preocupações com a economia, com o frio que viria, com o presente que daria para os filhos. Desproporcional foi a censura que fez a si mesmo internamente, por ter semelhantes pensamentos, pois questionou a justiça divina, e o cerne do seu dever, mesmo que por um relance. Contudo, nem ele sabia dizer por que tivera que sacrificar tudo. Para os outros poderem desfrutar de vidas normais, enquanto ele dormia no agito dos vagões e o único conforto que conhecia era o de estar à beira de um fogão de vagão?
Quando a noite caia, ele exercitava sua mente, no vagão de malas, imaginando o que poderia ter dentro de cada uma, livros, roupas elegantes, documentos. Quais objetos pessoais que iriam delatar certos aspectos da personalidade ou dos costumes de cada passageiro. Ele não carregava nada, tudo que tinha estava nos bolsos do sobrecasaca. Isso era tudo que tinha? Era tudo que era?
Acostumara-se, com a indiferença do povo, com a retribuição prometida e nunca entregue. As pessoas passavam por ele todos os dias, inúmeros vapores ele vigiou, e não lembrava de uma única vez nos últimos vinte anos que um sorriso, um cumprimento caloroso lhe fora oferecido. Era sempre um balançar respeitoso de cabeça e um olhar vazio para o rosto queimado do sol. E no entanto, apesar do desprezo e da indiferença, ele ainda estava ali. Sentado no vagão mais vagabundo da classe econômica, cheirando a fumaça e queimando o cigarro que ainda não parecia querer assumir a letalidade de seu uso contínuo durante as últimas quatro décadas.
Quando o vagão parou na estação seguinte, todos os passageiros desceram, e apenas um subira. Ele deteve-se ainda observando o fim do crepúsculo, nunca na sua vida o pôr-do-sol parecia tão eterno sem que houvesse zunidos de bala sobre a cabeça ou sangue pelo chão. Se acreditava ainda em algo, aquele momento parecia um sinal da providência, tentando consolá-lo com sua luz. No entanto, não era assim que interpretava, não inteiramente, via aqueles bagageiros vazios, o chacoalhar de um trem vazio, e uma atmosfera lúgubre preencheu o trem e o que havia dentro de si. E enquanto olhava a luz abandonado-o, pensara “Não me sobrou nada. Não, nunca tive algo para que restasse dele qualquer coisa.” E como se desse adeus ao ser mais caro de toda sua existência, tirou o chapéu em condolência a um luto que jamais se velava ou enterrava. Uma amarga e solitária lágrima brotou dos olhos castanhos, crentes de jamais ver a esperança, e se perguntando quando ela havia o deixado completamente.
Uma forte lufada de ar, o primeiro vento frio da noite do deserto, penetrou a cabine, e atingiu-o tão intensamente que ele pensou ter sentido alguém o chamando. Quando virou-se, apenas viu a janela aberta, entretanto, pode distinguir milhas longe, tão longe que questionou a veracidade do que estava vendo: dois gravetos formando uma cruz, e fixado entre ambos, garantindo a sustentação da imagem fúnebre a cova, um crucifixo de prata, brilhante como um milagre da criação, balançar-se com o vento. Ele engoliu as mágoas da vida, como bom velho, e ergueu o chapéu surrado sobre a face, apenas para distinguir um jovem e franzino garoto, de mãos nervosas e dedos trêmulos a sua frente, com uma reverência, apresentar-se:
- Xerife Colt, chamo-me Billy, cadete em treinamento, pedindo permissão para começar meu treinamento com o senhor a partir do dia de hoje!


