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Sala de jantar

A sala de jantar, cômodo anexo à sala de estar, conta com elementos característicos dos vapores, como assentos acolchoados e iluminação através de lustre. A decoração desta sala acompanha a sala de estar, no tom Gray beige.

Conto #2
00:00 / 08:50

Usufrua a jornada

      Ela soltou um suspiro de alívio quando jogou a bolsa no estofamento das poltronas e afundou a cabeça na mesa da sua cabine. Não que não gostasse de onde estava saindo, apenas gostava de ir. Sim, gostava do local de chegada, mas acima de tudo, de ir. O sorriso indescritivelmente belo, esmaecido pelo convívio com certas questões lhe extraia boa parte do brilho de natureza. Os olhos castanhos da jovem perdiam-se no fitar do interior daquele lugar. A locomotiva, do seu início ao fim, trazia a maior sensação de conforto que podia usufruir. O que, para si, era uma das grandes contradições. Um objeto que estava sempre em movimento, que havia sido inventado com este propósito, e que por isso, lembrava a si mesma, era o que proporcionava uma paz incomparável.

      - Senhorita…-  chamou o comissário do vapor destinado à pacata Lisboa.

Ela olhou um pouco confusa, seus olhos castanhos nublaram-se e as feições tornaram-se angustiadas, até que como o acender de uma lâmpada a trouxe o discernimento após meia dúzia de segundos encarando os olhos do homem. - Laiza. - Respondeu meio atordoada, como quem acorda de um sonho turvo e denso.

      - Gostaria de algo para beber, senhorita Laiza? 

      - Wine, please. - disse com uma feição natural e exausta.

      - Perdão? - retrucou o homem de forma sutil, porém confusa e com um toque de pompa, percebendo o uso do inglês em um vagão ibérico.

      - Digo, vinho, por favor. - corrigiu-se, percebendo a mudança súbita de língua e sem qualquer justificativa para isto. 

O homem a serviu e se afastou. Ela, um tanto corada, levou as palmas das mãos aos olhos e as puxou até o fim dos longos fios castanhos que naquele momento quase nada brilhavam. Ela sussurrou para si mesma “bloody hell”, e após perceber o mesmo, suspirou como se quisesse vomitar para fora tudo em sua mente relacionado ao trabalho que exercia como professora de inglês na academia. Ela terminou o constrangimento da troca de línguas com um gole tão extenso que quase expurgou todo o vinho da taça.

      - Eu suponho que a academia não esteja pagando de forma justamente seus professores, senão, não estariam bebendo vinho às sete da manhã de uma quinta-feira. - observou uma voz masculina, grave, com um tom preocupado e um quê cativante em sua sonoridade.  

Ela ergueu o olhar, reconhecendo o amigo.

      - Hi, Romeu! - Saudou num tom expressivo com a energia recobrada e brilho do olhar tornando a marcar presente e deixar vivo o castanho que o coloria.

Romeu fez um sinal de pare com a mão, categoricamente, e respondeu de forma assertiva, porém gentil.

      - Em português, caso não se importe. 

      - Logo, creio que esquecerei minha língua nativa. E às vezes me questiono o porquê fizeste questão de aprender o português, há tão poucos falantes aqui. - retrucou ela, bebendo o restante enquanto fazia uma careta amarga que não se devia de modo algum à bebida.

      - Assim como do inglês, minha cara. - respondeu o homem com um tom amável e um sorriso quente.

      - Romeu, diga-me que este cansaço é normal. Que não sou como tu, e que estou apenas demorando para me acostumar com a rotina de ministrar aula para um punhado de filhos de elitistas. - disse ela buscando uma resposta para seu estado.

Romeu era um homem de feições amigáveis, e o tipo de homem cuja presença era agradável a qualquer um que se encontrasse perto dele. No entanto, em raros momentos, assumia um semblante firme e olhares vigilantes. Ele acenou para o comissário e pediu que trouxesse uma xícara de leite morno. Nos curtos minutos que se passaram até que o funcionário cumprisse sua tarefa, Romeu contemplou Laiza com um olhar averiguador e ergueu o cenho, deixando escapar uma careta acompanhada com uma risada de desapontamento, isenta de qualquer tom de surpresa. Ele deu uma leve bebericada na xícara e colocando a porcelana sobre o pires, como um juiz que bate o martelo, sentenciou:

      - Absolutamente não. Laiza, enquanto não entenderes que o estado de todos nós é composto por diferentes áreas que precisam ser cuidadas com esmero, nunca lograrás um estado de espírito que goze da plena capacidade que todos dispomos.

      A jovem passou a mão no rosto, um pouco embaraçada pela censura, um pouco irritada pelo sermão, e percebeu certos detalhes em si. Seus olhos ardiam, e quando apalpava abaixo deles sentia uma profundidade maior do que deveria. Sua vaidade feminina, expressada de súbito, fez com que olhasse para o vidro da janela. Enquanto o vapor movia-se, ela pôde distinguir seu reflexo sobre a visão da paisagem que estava ao redor da ferrovia. Os olhos apresentavam um tom roxo excessivo abaixo das pálpebras. A pele, antes reluzente como o bronze de ferramentas helênicas, com o mesmo poder destrutivo que estas, agora era opaca, e até os lábios pareciam ter se afinado. 

      Compreendo que talvez seja mais fácil tentar lidar com certas dificuldades empenhando o máximo de si, contudo, tenho bons motivos para crer que estás concentrando teus esforços no campo errado. - respondeu ele enquanto terminava o leite morno, e com o soar de porcelana chocando contra si mesma, ele fez um apelo acompanhado por um sorriso preocupado:

      - Talvez para que entendas, eu tenha que adentrar o campo que estás, para que possa te guiar para o que tu deves atentar-te. Take it easy, miss Laiza, you look very tired. - e sumiu na porta do vagão, como alguém que tinha concluído sua tarefa e tinha sido dispensado de suas ocupações prioritárias. 

      Ela deteve-se olhando para o reflexo na janela, para as olheiras e os olhos castanhos que lhe pareciam tão negros que não lhe pertenciam. Quando voltou a si, a taça estava cheia, entretanto, dessa vez, beberia aos poucos, procurando sentir o toque ácido do álcool na sua boca. Uma refeição se seguiu, era o mesmo que estava habituada a degustar nas ceias promovidas pelo clube de professores da academia, todavia o gosto lhe parecia tão surpreendentemente inédito, que acreditava nunca ter sentido o gosto de peixe, queijo e até mesmo pão nos últimos meses que se passaram. Ela comeu com avidez, e censurou-se por ter pedido para adiantar o almoço para o garçom que a fitou com uma surpresa que questionava a etiqueta que tinham os portugueses interioranos. 

      Quando sentiu-se farta, abriu o primeiro volume de um dos livros de literatura que carregava consigo, mas que há muito sequer folheava sob a justificativa de ter coisas mais importantes que exigiam seu tempo. O tempo passou e ela adormeceu na execução deste ato de prazer redescoberto, e, quando acordou, a palavra “Fim” estava escrita no fim da página.

    O comissário aproximou-se trazendo uma xícara de café, e ao pegar, o reflexo de si chamou atenção no negro da bebida. Contudo, não se questionava como o negro da bebida poderia refletir qualquer coisa. Não, não questionava nada. Estava catártica em redescobrir seu próprio rosto, o brilho de âmbar nos olhos, agora desprovidos dos tons roxos nos seios da face que já não sabia quanto tempo fazia que estiveram ali. Os lábios retomaram sua saúde e cor, e o sorriso brilhava como um colar de pérolas que qualquer duquesa pagaria para obter.

      - Obrigado. - Disse ela, erguendo o sorriso, e devolvendo a xícara intocada para o comissário que se chocou por perceber só depois de horas de viagem como a mulher que estava a sua frente era bela.

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