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Corredor

O corredor, por sua vez, leva aos demais cômodos da casa e foi decorado para remontar os corredores dos vapores europeus, tanto no design como nas cores hot chocolate que o preenchem.

Conto #7
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O sentido da viagem

      Das pessoas que merecem reconhecimento, neste mundo que já não logra mais acolher a todos e dar uma casa; não por sua própria, mas por conta daqueles que nele habitam e infringem controle sobre os demais. - merecem graças aqueles que não tem um lar, e mais ainda, aqueles que não se sentem em um, mesmo dispondo de vários lugares de repouso em sua caminhada. E o ato da jornada, os traz mais paz à mente, do que um teto sob a sua cabeça que lhe rende mais penúrias do que conforto. Nisto, as locomotivas, máquinas recém inventadas, eram os lares modernos daqueles incautos. Eram lares dos desassossegados, o soar do apito era o chilrear dos pássaros que os despertavam, o horizonte seu jardim, e os corredores, ligando umas cabines às outras, oportunizaram uma linha de laços infindáveis, proporcionados pela ocasionalidade ou por uma situação maquiavelicamente arquitetada.

      No entanto, Esmeralda estava satisfeita com isso, sua vida quase nômade de artista itinerante permitia certa flexibilidade conveniente de acomodações, há uma década, e provavelmente se estenderia por mais três. Sua personalidade agradável e suave faziam dela uma ótima interlocutora para os passageiros de primeiras viagens que vagavam pelos corredores, incertos da numeração de sua cabine ou de qualquer que fosse o alvo de sua procura. Um coração altruísta gerou um temperamento dócil e acolhedor, devido a certas relações conturbadas que tinha na família, tornou-se uma mulher gentil e muito amistosa.

      - Passe aqui, mais tarde, e abriremos uma garrafa para comemorar a tua nova exposição de sucesso! - comentava Rufus, o cozinheiro do trem, enquanto Dante abraçava a jovem quase chorando. 

      Enquanto ela vagava pelos corredores, fingindo ir a algum lugar que acreditava jamais ser possível de chegar, ela secretamente cobiçava a relação dos dois rapazes. Era um mundo de convenções pouco flexíveis, e muitos olhavam para a relação deles com ojeriza. Ela, por outro lado, os compreendia, e sabia o que os fazia tolerar certo desprezo. Era o acolhimento que nenhum pudor social, vergonha ou medo iria servir de obstáculo para que demonstrassem o amor que sentiam um pelo outro, uma compaixão que, no mundo que ela podia ver, era escasso; não por falta de sentimentos, mas porque parecia que naquele mundo todo apego parecia ser uma vulnerabilidade. Ganhar era o que importava, ter sucesso acima de tudo, e nisto, um relacionamento parecia apenas obstruir o caminho da vitória. 

   Durante todo seu crescimento, Esmeralda contemplara a vida como um caminho estreito, tal qual o corredor que incessantemente persistia em percorrer, apertado, solitário, e muitas vezes, vazio. Tudo o que importava era a cabine que estava ao seu final, a cabine que pertenceria a ela por alguns momentos, que ela conseguiria gozar de certa paz e calma, mas que com o passar do tempo, tinha a impressão de que o júbilo durava cada vez menos. 

      Algumas vezes, ela olhava nos pequenos espelhos das cabines que habitava, e via sobre a pele escura que a preenchia, desprezada por muitos durante toda sua vida. A forma como sua existência assumia em seu corpo, muito fizera na sua vida questionar-se no que ela se diferenciava dos demais, que a negavam oportunidades e às vezes até as saudações alegres que destinavam aos demais. Por muito tempo, o combinado de fatores que constituam a si, fez ela crer que não era mais do que um amontoado de problemas e inseguranças recicladas em um objeto que a maioria fingia admirar pelo reaproveitamento, mas que tinha asco de usar. O incessante sentimento de não pertencer a lugar algum, a crescente desvalorização que destinavam ao tratar com ela, independente da amabilidade que habitasse em seu ser, os traumas de uma criação maculada pela agressividade e negligência afetiva fizeram de si um ser piedoso em um mundo implacável com os gentis. E a forma como esse ser se apresentava, raramente era invariável no modo como a tratavam, como se sua pele, seus traços, fossem o sinônimo de um símbolo que agora todos queriam esquecer, apagar da história, por inúmeras razões. O mundo que agora a fazia ascender como artista, pintando a sua dor de renegada, o fazia porque a melancolia e as crises de identidade estavam tornando-se temas atemporais, e que artista melhor para representar semelhantes sensações, do que alguém subjugada pelo julgamento coletivo e a discriminação velada? Até sua ascensão, era fruto das catástrofes deste novo mundo, e o que a sustentava neste mundo, era da mesma natureza dos seus flagelos.

      Contudo, os seres humanos pecam em acreditar que estão acima das leis da própria natureza que o gerou, e a diversidade sempre acha um jeito de florescer, mesmo em ambientes inférteis para tal. E no chacoalhar daqueles corredores, com as árvores passando rapidamente na paisagem, e os vidros da janela como objetos que transportavam a jovem para um mundo que ainda conseguia se mostrar belo, ela sentiu-se curiosamente tentada a olhar não para o mundo lá fora, mas, pela primeira vez, para dentro. E deu com uma cabine aberta, não a sua, mas de outra pessoa. E ali ficou, estática por minutos que pareceram décadas, olhando para um eterno interior que não parava nunca de desenrolar-se. E uma voz embaraçosa interrompeu sua meditação involuntária:

      - Mil perdões! Eu não lido bem com estes ambientes tão fechados, e poder ver a paisagem de ambos os lados da cabine me traz uma sensação de conforto, perceber que a viagem está correndo de ambos os lados. - surgiu uma jovem de cabelos castanhos encaracolados como os seus, mas de pele pálida e lábios sutis, que ficaram entreabertos, congelados, enquanto os olhos verdes brilhavam como de um explorador que recém havia descoberto uma relíquia inestimável.

      - Se quiser, posso abrir a janela para que sintas o vento correr pela a cabine, ajuda a lidar com a sensação de sufocamento. A propósito, chamo-me Esmeralda. - disse a jovem com uma alegria nervosa que lhe fazia atropelar as palavras.

      A jovem sorriu ao perceber o que se passava com Esmeralda, e com um sorriso amigável que a segunda só encontrava quando via nos olhos dos outros, cumprimentou a outra com um sorriso rosado e um tom que cedeu um conforto auditivo que poucas vezes tinha ouvido. - Sou Safira, um pouco menos valiosa que tu, mas se souberes olhar, garanto que acharás algo que aprecies… - comentou com um sussurro agridoce que condensava uma sutil malícia com o interesse genuíno na mulher que estava a sua frente.

      Desde aquele dia, uma piada descontraída e um tanto despudorada servira de porta para uma cabine que Esmeralda acreditava jamais ser possível de achar. E, conforme os dias de viagem foram passando, Safira deteve-se tantas vezes em desembarcar, que cada vez mais se distanciava do destino que por muito tempo acreditava ser o seu, pois nunca em sua vida tinha achado conforto na claustrofóbica máquina que transportava as pessoas de seus lares, tirando-os de um conforto que pensava existir apenas aquele em toda uma vida. Esmeralda, por sua vez, basta dizer que os corredores agora lhe pareciam suficientemente largos para um passeio a dois, e o pulsar de seu coração enquanto sentia os dedos da jovem entrelaçados nos seus, faziam o chacoalhar do trem sobre a ferrovia passarem completamente imperceptíveis. 

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